A Irmandade

Desde 1997 a Irmandade dos Atores da Pândega já se estabelecia como parte do ambiente cultural da cidade de Lagoa Santa (MG), apesar de sua instituição jurídica acontecer em 2001. Por meio da capoeira angola, do reinado, das guardas de congo e moçambique, do teatro, da dança (corpo/corporeidades) e da musicalidade de matriz africana e afrobrasileira, adornados pelos fundamentos de terreiro (candomblé, umbanda e congado), estrutura-se o escopo das referências que subsidiam a atuação da Associação Cultural Irmandade dos Atores da Pândega.

FOTOS: (fotos da Irmandade lá no início, dos primeiros encontros que ocorreram nesse espaço – incluir legenda com ano e pessoas presentes nos registros).

Nosso trabalho tem como objetivo a prática, difusão, proteção e pesquisa das tradições de culturas afro-brasileiras, indígenas e culturas de raiz, compreendidas como estratégias de organização social e como contribuições fundamentais para o enfrentamento dos preconceitos étnicos, raciais e sociais.Atuamos no fortalecimento da identidade cultural do povo brasileiro e na promoção de uma cultura democrática. Atualmente, oferecemos aulas regulares de capoeira angola, percussão e dança afro para crianças, jovens, adultos e idosos. Também produzimos espetáculos de teatro de rua, com destaque para o cortejo do Boi da Manta.

FOTOS: (fotos das aulas na sede, Cortejo do Boi).

Realizamos projetos de arte-educação em escolas públicas, organizações comunitárias e, de forma contínua, na sede da Irmandade, como ferramentas de transformação social. Por meio da arte e da cultura, promovemos a inclusão de pessoas marginalizadas e de jovens em situação de vulnerabilidade social.

FOTOS: (atividades, oficinas e outras ações em escolas).

Promovemos eventos seguindo o calendário das tradições populares e realizamos, anualmente, o festival Lapinha Museu Vivo — um encontro de manifestações e expressões diversas das culturas tradicionais e de raiz, com ênfase nas matrizes africanas e indígenas. A evento tem o propósito de salvaguardar a memória e preservar o patrimônio cultural, tanto material quanto imaterial.

FOTOS: carnaval com boi, são joão no Mato do Tição, boi no reinado do Recanto, Lapinha Museu Vivo.

A sede do grupo está localizada no bairro Várzea, em Lagoa Santa/MG, uma região onde encontram-se diversas manifestações culturais de tradição, como: as pastorinhas, o boi da manta, capoeira angola, candombe, congado e folia de Reis. Fato que favorece o intercâmbio entre as manifestações, além da abertura e recepção das mesmas pelo público adjacente.

FOTOS: (foto da sede, manifestações da várzea, imagem de mapa, alguma ilustração).

Ao longo do tempo de existência da Irmandade, o intercâmbio cultural, como forma de compartilhamento, transmissão e troca de conhecimentos sempre esteve presente, dessa forma, Mestre João Angoleiro, as Rainhas da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio, Carlinhos de Oxossi, Babilak Bah foram presenças que contribuíram e inspiraram os nossos trabalhos.

FOTOS: (fotos e vídeos de Mestre João na Irmandade, fotos com Belinha, reis, rainhas e campeões do 13 de maio, e com as demais pessoas citadas. Registros em eventos da Irmandade ou ou que contenham o Mestre e/ou outros membros do grupo).

Vale destacar que a constituição do grupo que originou a Irmandade fez parte do encontro de Mestre Gercino com outros artistas a partir da “montagem do espetáculo de teatro-dança, concebido e dirigido por Geraldo Vidigal, ‘Curupira: um balé no fim dos tempos’”, no final da década de 1990.

FOTOS: (registros da turma do teatro).

As trocas com Mestre Paulo Lobato, com o Tambor de Crioula do Maranhão, o candombe do Quilombo do Açude, de Dona Mercês e Dona Geralda, os saberes das Mestras e Mestres da Comunidade Quilombola do Mato do Tição, entre outras Mestras e Mestres de tradição de Minas Gerais e do Brasil também fortaleceram e orientaram nossas movimentações.

FOTOS: (encontros com esses mestres).

Atualmente, a Irmandade mantém vínculos e realiza intercâmbios constantes com a Comunidade Quilombola Mato do Tição, em Jaboticatubas e com o Terreiro Treze de Maio, da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio, localizado no bairro concórdia, em Belo Horizonte. Acreditamos que essas são formas de proporcionar processos vivenciais genuínos às (aos) alunas (os) e discípulos participantes do grupo. Fortalecer os vínculos entre as Mestras e Mestres capoeiristas e de outras manifestações culturais e religiosas, em suas funções de lideranças comunitárias e guardiãs e guardiões de saberes, constitui-se também como um meio de valorização e preservação das tradições presentes no nosso território.

FOTOS: (consciência negra no Mato do Tição, capoeira no concórdia, outros eventos ).

Menino quem foi seu mestre?

Mestre Gercino

Quando me pedem para contar sobre a minha história, eu penso que existe uma certa linearidade na ordem dos acontecimentos narrados, mas que também existem muitas intersecções porque são linhas cruzadas, encruzilhadas que me fizeram chegar onde estou hoje. A capoeira sempre esteve muito presente na minha formação, desde a infância, mas de forma um pouco mais aleatória, pois a gente presenciava a capoeira na antiga praia de Lagoa Santa (MG). Na época, existia um angoleiro que vivia no Joá, quando o bairro ainda não tinha nada, era um homem que morava ali e que se chamava Roxo, atualmente ele mora na região de Nova Lima. Foi ele quem deu o toque da capoeira para um primo meu, que ia repassando esse conhecimento para gente.

(Prainha de lagoa santa)

Mais tarde veio o carnaval, eu fazia parte da escola de samba Unidos da Várzea, que depois teve o nome alterado para Império da Várzea. Dessa forma, os fazeres que envolviam a confecção das fantasias, a dinâmica da escola, a coletividade, foi me influenciando a cultura popular. A primeira dança que eu experimentei foi o samba, o samba das escolas de samba da cidade. Aparecida, que era a porta bandeira, e Lurdinha, que era passista, minha dupla nos desfiles, eram minhas parceiras, juntos nós íamos a muitos bares pela cidade, dançávamos em diferentes ocasiões.

(Escola de samba lagoa da santa)

Naquele tempo Aparecida já falava muito sobre o balé Aruanda, pois ela trabalhava como doméstica em Belo Horizonte e ficou conhecendo o grupo. Quando concluí o segundo grau, fui trabalhar no aeroporto e assim que consegui um dinheiro para estudar em Belo Horizonte, eu fui procurar o Aruanda para fazer a dança afro. Iniciei as aulas e passei a ver a Tropa Mineira Teatro Dança, que ensaiava no espaço do nosso balé. Foi assim que conheci Geraldo Vidigal, meu mestre de teatro, uma figura importantíssima na minha trajetória. Isso ocorreu na década de 80.

(Balé Aruanda, Geraldo Vidigal)

Depois fui trabalhar na Aeronáutica e um colega me contou que estavam abertas as inscrições para o Teatro Universitário da UFMG. Eu fiz a seleção e fui aprovado. Foi o Geraldo Vidigal quem, na época, me ajudou na preparação para a prova. Assim, em 1987 eu começo a estudar na instituição. O Vidigal fazia parte desse processo de renovação do Teatro Universitário, ele também estava dando aulas no curso. Eu fiquei 3 anos neste processo de formação, sendo frequentemente reportado para a teatralidade dentro da cultura popular, pois o Vidigal era um pesquisador dessa vertente no balé Aruanda.

(Teatro universitário UFMG)

Já em 1989, eu resolvi ir para fora de Minas Gerais, pois não via para onde expandir aqui no estado. O teatro ainda era muito limitado na nossa região. Em 1990, eu cheguei na Europa, durante a Guerra do Golfo, o que foi péssimo. Nessa época, toda a Europa estava em pânico, com receio de uma terceira guerra. Então, nós que éramos imigrantes, junto com o povo da Checoslováquia, que era um território que estava se dividindo, vivemos um caos. Nestes tempos difíceis, eu encontrei Fernando, que atualmente é mestre de capoeira e reside no Mato Grosso. Fernando que na época era bem novinho, jogava capoeira, fazia saltos altos, tinha uma prática no formato de espetáculo. Quando eu soube que ele tinha os instrumentos, nós começamos a criar um show, ficamos 20 dias ensaiando e nos apresentando por um bom tempo. Esta foi a primeira vez que a capoeira realmente salvou a minha vida, ela me resgatou durante um processo de marginalização e vulnerabilidade longe de casa.

(Viagem pra Europa)

Foi Fernando quem me disse pela primeira vez que eu era angoleiro, eu nem sabia que existia a capoeira angola, que tinha uma separação, mas ele disse “sua movimentação é toda de angoleiro”. Ele me aconselhou a chegar no Brasil e procurar a capoeira angola, e assim eu fiz. Quando retornei, na segunda metade da década de 90, eu reencontrei Geraldo Vidigal que estava montando o espetáculo “Curupira: um balé no fim dos tempos” (Batista, Ipiranga-Júnior, Diniz, 2022). Juntei-me a ele, que agora estava com uma nova turma de artistas. Quando Vidigal faleceu, meus pais biológicos também morreram. Nesta época, eu já estava na capoeira angola.

(Retorno para o Brasil, teatro curupira)

Eu cheguei no Mestre João em 1996, fui em busca da dança afro-brasileira, que eu já fazia. Chegando lá, ele me disse que uma das bases da dança era a capoeira angola e assim juntou o útil ao agradável porque eu já estava atrás da capoeira angola. Foi assim que comecei a praticar e com 1 ano eu passei a dançar na Companhia Primitiva de Arte Negra com Mestre João. Continuei nesse percurso trabalhando a dança e depois de um tempo, eu comecei a dar aulas. Fazia dança à tarde e à noite eu ainda fazia aula de capoeira com o Mestre João. Foi um período muito rico pois várias pessoas que encontrei naquele movimento, hoje são grandes mestres e artistas. Foi neste momento que conheci Babilak Bah, multiartista paraibano, provocador e pesquisador de sons, ruídos e possibilidades sonoras, além de Carlinhos de Oxossi, Ogã, pesquisador das tradições africanas e afrobrasileiras, que tocava pra gente na dança.

(Companhia primitiva, mestre João)

Em 1997 e 1998, na companhia de Alexandra Simões e Renata Otto Diniz, artistas que conheci no teatro e que também estavam comigo na capoeira, tive a ideia de criar um espetáculo com a história do Boi. Logo ficamos sabendo que havia um Boi em Belo Horizonte, no bairro Concórdia. Foi assim que cheguei até Dona Isabel, na Guarda 13 de maio, e com isso começou a história do nosso Boi na casa dela. Ele nasceu com essa identidade diferente, pois o pai é do Concórdia, mas seu filho também herdou uma mentalidade teatral, é capoeirista, um Boi angoleiro. Ele já vinha trazendo essas outras influências. Então, tudo foi se misturando.

(Dona Isabel, início do boi)

Nessa época, o carnaval de Lagoa Santa já tinha acabado, aquilo que foi minha formação, virou só uma nostalgia dentro da gente. Neste tempo que eu passei fora, acabou. No entanto, as coisas estavam todas dentro do iate, tinha dado uma enchente, a lagoa encheu demais, chegou ao nível da rua, e as coisas da escola de samba estavam todas cheias de barro. O iate na época era todo aberto, existiam salas ali dentro.

(Primeira saída com o boi)

Eu já tinha começado a capoeira com os meninos aqui da cidade e quando chegou o carnaval, eu pensei: “o que vamos fazer?”, me deu dó não ter mais carnaval aqui. Nós tínhamos uma boneca e resolvemos colocar o Boi na rua, já que estávamos trabalhando nele. A gente não tinha instrumento e foi aí que pensei em ir no iate. Fomos até lá, desenterramos instrumentos, encontramos fantasias, achamos muitas coisas. Pedimos para escola e as pessoas autorizaram. A gente limpou tudo e entregou de novo para escola. Foi quando eles, inclusive, resolveram sair mais um ano, assim tivemos uma última edição do desfile da escola de samba Império da Várzea.

Quando cheguei na Guarda 13 de maio, eu percebi que tudo que eu aprendia naquele espaço não tinha preço, então comecei a passar mais tempo ajudando, auxiliava na cozinha e nas demais tarefas que surgiram. Depois de alguns anos que eu estava lá, Dona Isabel me chamou pra fazer parte da Guarda. Ao estreitar esses laços, eu trouxe ela para Lagoa Santa, assim como outros membros do Reinado. Margarida Casimiro, Carlinho de Oxossi, Mestre Daniel, todos vinham participar dos nossos desfiles e em outras atividades.

Os mestres e artistas com quem tive contato nesses anos passaram a frequentar a Irmandade, e foi uma época de trocas muito ricas. No inicio dos anos 2000, eu conheci o Quilombo do Açude e o Quilombo do Mato do Tição, dois lugares que contribuíram para a minha trajetória. Cheguei ao Mato do Tição a convite de uma amiga que me levou para colaborar com um trabalho que o grupo musical do quilombo estava gravando. Depois, nós fizemos outros projetos juntos e eu mantive o contato. Dona Divina, matriarca do Mato do Tição também foi quem me orientou na formação do Boi. A troca com a comunidade foi muito significativa para fundamentar nosso trabalho e desde então tem acrescentado na formação dos atores da Irmandade.

Em 2000 eu também conheci Dona Maria do Batuque, que é de São Romão, uma cidade que fica à beira do Rio São Francisco. Eu escutava muitas histórias sobre São Romão com outros colegas do teatro, tinha um que era de lá e falava de Dona Maria, falava do Boi dela, que tinha um elefante, tinha um macaco e tudo. E esse Boi dela era centenário, eu acho que o pai ou o avô dela já fazia esse Boi lá em São Romão. Então eu fui até lá para encontrar Dona Maria, conheci o Boi, lá também é um lugar que tem muita Folia de Reis, mas cada folia é diferente, tem muitos caboclos também, a festa dos caboclos. Eu aprendi muito nesta época.

Entre as pesquisas e os cortejos do Boi, seguimos com a capoeira angola orientada pela ACESA, e com a prática de dança também com base na companhia primitiva. Em 2004 surge o Lapinha Museu vivo, que agora já está na 21º edição. Até então o nosso grupo não tinha feito nenhum evento grande, nenhum encontro. E até hoje eu continuo nessa lida, produzindo o Encontro, fazendo eventos, guiando os cortejos de boi, durante esses anos todos e nos mais variados lugares. Desde 1998, quando realizamos o primeiro cortejo no carnaval de Lagoa Santa, o boi nunca mais parou de sair nas datas comemorativas, como festa junina e festas folclóricas, ele tornou-se essa referência na cidade.

Em 2014, Mestre João consagrou seus primeiros contra-mestres no encontro do Lapinha, na época fomos eu, mestre Daniel, mestre Gino, mestre Marcio Gunga, Mestre Claudinei, Mestre Renato, Mestre Boi. Já em 2019, nós fomos consagrados mestres, também no Lapinha. E a partir de então surgiu o nosso grupo de capoeira angola porque depois da mestria, mestre João nos disse que precisávamos ter a nossa própria identidade, assim nasce o grupo Treme Terra, em Lagoa Santa (MG).